A polêmica da ritalina contra a inquietação na vida escolar

Apesar da peculiaridade de cada criança, algumas características são inerentes à maioria delas. Impaciência e falta de atenção para atividades que não as cativam entram nesse grupo. Mas é importante ficar atento, pois uma linha tênue separa o comportamento normal dos sintomas do TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade) — um tipo de transtorno neurobiológico provocado por mau funcionamento das estruturas neurais que se caracteriza por desatenção, inquietude e impulsividade.

Nos estudos, o professor de inglês Rafael Garcia Ribeiro, de 22 anos, nunca foi indisciplinado. Apesar de inquieto, era dono de um boletim invejável, recheado de boas notas. Mas na época em que foi prestar vestibular pela segunda vez, a falta de concentração começou a ficar mais evidente e se tornar um obstáculo. “Não conseguia me concentrar nos estudos, ficar muito tempo focado. Resolvi marcar uma consulta com um psiquiatra. Ele me passou um questionário, fez algumas perguntas sobre meu cotidiano e notou que eu apresentava sinais de hiperatividade. Ele me diagnosticou como portador de TDAH”, lembra Rafael.

Como se trata de uma doença neuropsiquiátrica, o Dr. Marcelo Gomes, neuropediatra e Diretor da Área Terapêutica da farmacêutica Novartis, explica que não existe um marcador biológico que identifique a doença, apenas é possível fazer o diagnóstico clínico, baseado em análise do cotidiano. “O diagnóstico do TDAH é feito por informações da rotina do paciente. Se são crianças, colhemos esses dados com os pais e nas escolas. Baseado nessas informações, junto com o questionário feito em consultório, descobrimos se existe ou não o transtorno”, afirma. No questionário, é preciso que os pacientes se encaixem em seis ou mais situações de desatenção ou sintomas de hiperatividade descritos.

No tratamento, além do acompanhamento psicológico, também é utilizada medicação à base de metilfenidato, substância química estimulante. Aqui no Brasil, a única medicação com essa substância é a ritalina, da farmacêutica Novartis. Os preços podem variar de R$19 a R$200 dependendo da quantidade de mg e de comprimidos.

Os estimulantes presentes no medicamento aumentam a liberação de dopamina (importante neurotransmissor precursor natural da adrenalina) em determinados circuitos do sistema nervoso central, ajudando a corrigir o funcionamento deficitário e auxiliando no controle da hiperatividade.

Após ser diagnosticado, Rafael começou a tomar ritalina. Na primeira semana, tomava 10 mg do medicamento, dividindo o comprimido ao meio, até se acostumar com os efeitos colaterais, que incluem insônia, enjoo e dor de cabeça. Como na época o professor tinha 90 kg 1,90 m, foi preciso aumentar a dose.“Em poucos meses passei a tomar dois comprimidos”, lembra Rafael.

Rafael percebeu melhora razoável na concentração. Sentiu-se mais atento aos estudos e menos ansioso – apesar de o remédio não ser destinado especialmente para esse fim. “Não sei se tem relação, mas cheguei até a emagrecer. A ansiedade ficou controlada e, com isso, a vontade de comer passou”, lembra. A perda de peso pode ter relação com o medicamento, já que na bula está descrita a possível diminuição do apetite.

Riscos e efeitos indesejados

Existem muitas controvérsias sobre as consequências que esse medicamento pode trazer ao paciente em longo prazo. A principal queixa a respeito do medicamento é que, por se tratar de um psicoestimulante, pode acabar viciando. Segundo a psicóloga Roseli Caldas, da Abrapee (Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional), a estimulação artificial dessensibiliza a procura por prazeres na vida cotidiana, provocando a busca contínua pelo prazer artificial produzido pela droga. “Além disso, o metilfenidato pode causar reações adversas no sistema nervoso central como, por exemplo, psicose, alucinações, convulsões, sonolência, ansiedade e, até mesmo, desejo de suicídio”, reforça Caldas. A reação mais comentada, e que acabou apelidando a ritalina de “droga da obediência”, é o efeito zumbi que pode causar. Uma espécie de apatia ou letargia. Rafael, entretanto, nunca se sentiu assim.

Gomes afirma que a tranquilidade muitas vezes é confundida com o efeito zumbi, mas é reflexo da ação do medicamento controlando a hiperatividade da criança e focando-a em uma atividade específica.“A criança está a todo vapor. Depois de medicada ela “diminui” essa efusividade. Isso não quer dizer que interferiu na personalidade da criança, apenas a trouxe para a normalidade. Se houver intereferência, sugerimos que a medicação seja suspensa”, completa

Os únicos efeitos colaterais de que Rafael se recorda aconteceram nos dois primeiros dias. “Senti uma sensação boa, uma serenidade quase semelhante a uma alucinação, mas passou rapidamente. Depois, fiquei mais elétrico para as atividades e tive um pouco de insônia. O que mais lembro é do mal estar estomacal e dos enjoos”, diz. Os efeitos são comuns e descritos na bula do medicamento. Quando parou de se medicar, o professor confessa que sentiu falta do medicamento, mas não por necessidade química. “Voltei a ser desorganizado como antes”, afirma.

O neuropediatra Marcelo Gomes e o psiquiatra Dr. Paulo Mattos, coordenador do Grupo de Estudos do Déficit de Atenção da UFRJ, dividem a mesma opinião: a dependência de estimulantes ocorre quando eles são usados de modo indevido, não prescrito pelo médico. “A ingestão correta diminui muito o potencial de vício e ainda protege contra o uso de substâncias ilícitas”, acrescenta Mattos.

O DEA (Drug Enforcement Administration), órgão administrativo de narcóticos da Polícia Federal norte-americana, ressalta que o uso do metilfenidato é legal no tratamento de TDAH, porém há registros que indicam que o aumento do uso desta substância na terapia cresce paralelamente com o número de adolescentes e adultos jovens que fazem uso abusivo (e sem prescrição) da ritalina. Segundo dados do DEA, aproximadamente 3.601 atendimentos dos pronto-socorros em 2010 estavam relacionados ao uso indiscriminado do metilfenidato, e que 186 mortes estavam ligadas ao uso do medicamento.

Respaldado nos dados do Centro de Estudo de Ciência e Genética da Universidade de Utah, nos EUA, Dr. Luiz Alberto Chaves de Oliveira, coordenador de Políticas Sobre Drogas no Estado de São Paulo, afirma que de 30% a 50% dos jovens em tratamento por dependência química relataram já ter abusado de metilfenidato, pois os efeitos são semelhantes ao da cocaína, que também é estimulante.

Na página oficial do DEA, há uma comparação entre os efeitos do metilfenidato com os da cocaína e das anfetaminas, seguido do alerta “o abuso desta substância tem sido documentado entre os dependentes químicos. Eles dissolvem comprimidos de ritalina em água para injetar nas veias. Quando injetados, os componentes bloqueiam vasos sanguíneos, causando sérios danos aos pulmões e à retina”.

Apesar de discordar da associação e garantir que o metilfenidato não é similar à cocaína, Gomes afirma que as pessoas com TDAH têm maiores chances de abusar de drogas, mas ressalta: “por uma questão neurológica, e não relacionada ao uso da medicação. Pelo contrário, o tratamento diminui o risco de vício”, argumenta.

Outra pesquisa, da FDA (Food and Drugs Administration), órgão de vigilância sanitária dos EUA, e do NMH (National Institute of Mental Health), feita em 2009, traz mais dados assustadores. O risco de morte súbita para adolescentes que tomaram ritalina é de dez a 14 vezes maior do que para queles que nunca foram medicados.

Benefícios do tratamento

Contra os problemas que busca atacar, a ritalina é eficiente e ajuda a controlar os sintomas de quem realmente possui TDAH. “O medicamento foi feito para ser usado por quem tem problemas de TDAH, não por qualquer pessoa que queira ter concentração. E mesmo o paciente com transtorno, se apresentar efeito colateral permanente, deve ter a medicação suspensão imediatamente”, reforça o neuropsiquiatria Marcelo Gomes.

Em um estudo feito pelo Instituo Nacional de Saúde Mental, dos EUA, denominado MTA (Multimodal Treatment Assessment), que em tradução livre significa Avaliação de Tratamento Multimodal, o medicamento apresentou bons resultados no tratamento de crianças com TDAH. Durante a pesquisa, 579 crianças foram separadas em quatro grupos: 1º) só recebeu tratamento com medicamentos, 2º) tratamento baseado em psicoterapia, 3º) passou por tratamento comportamental-cognitivo com psiquiatras e recebeu medicamentos e o 4º) recebeu tratamento somente com pediatra, sem medicação. Os grupos que apresentaram melhores resultados quanto ao aprendizado foram o 1º e o 2º.

O professor de inglês Rafael avalia que teve bons resultados com a medicação. Portador do TDAH, ele conseguiu melhorar a concentração e, consequentemente, o desempenho nos estudos. “Conseguia ficar sentado por longas horas, estudando. A dedicação me trouxe bons resultados, fui convocado para a segunda fase do vestibular”, completou.

Outra pesquisa, da Academia Americana de Pediatria, acompanhou por dez anos o desempenho escolar de 112 crianças e jovens portadores de TDAH, na faixa etária de 6 a 18 anos, que faziam uso de metilfenidato. Quando reavaliadas, 83 jovens que foram tratadas com o estimulante apresentaram menos propensão a desenvolver transtornos depressivos, de ansiedade e comportamento perturbado.

Diagnósticos indiscriminados

Os maiores problemas relacionados ao uso de ritalina estão no uso incorreto e no descuido no diagnóstico. Geralmente, psiquiatras e professores partem de uma análise estereotipada, baseada no senso comum: se é inquieto, tem TDAH; se é distraído, também. Muitos não utilizam o DSM (Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais) para diagnosticar o transtorno. Aí está o erro. Quando as análises são feitas erroneamente, o paciente passa a ser medicado com ritalina, mesmo sem precisar.

E um dado chama atenção para os possíveis diagnósticos errados: a explosão de vendas do medicamento. Em oito anos (de 2000 até 2008), a comercialização anual de caixas de ritalina passou de 71 mil para 1,147 milhões, sem contabilizar as demandas revendidas clandestinamente no País. O número coloca o Brasil como o segundo maior consumidor de metilfenidato do mundo, perdendo apenas para os Estados Unidos. Entretanto, é válido lembrar que a ritalina é o único medicamento para tratamento de TDAH comercializado no território brasileiro, o que contribui com o grande consumo no País.

Para alguns médicos, esse crescimento se dá porque aumentou o acesso ao diagnóstico e ao conhecimento sobre o transtorno. “Enxergo esse aumento de maneira desejável. Segundo dados do IBGE, até 2010 existiam 924.732 pessoas com TDAH, mas apenas 184.481 estavam em tratamento. Se as vendas continuarem aumentando, todos os portadores terão acesso à medicação”, afirma o psiquiatra Paulo Mattos.

A OMS (Organização Mundial de Saúde) reconhece o transtorno e, juntamente com Associação Americana de Psiquiatria, estima que cerca de 4% dos adultos e de 5% a 8% de crianças e adolescentes em todo o mundo tenham TDAH. Além disso, as entidades calculam que pelo menos duas crianças de uma sala de aula de 40 alunos sejam portadores.

Mas alguns psicólogos acreditam que o aumento no consumo é reflexo de uma política de medicalização. A psicóloga Roseli Caldas afirma que tais vendas espelham uma sociedade imediatista, que busca nos remédios resultados rápidos e eficientes. “A medicalização é como um mascaramento de questões sociais, uma vez que atribuir doenças a indivíduos nos exime de buscar nas relações sociais, econômicas e políticas as causas e soluções para os problemas da sociedade. No caso da educação, fica mais fácil diagnosticar crianças do que tentar compreender quais fatores poderiam ser responsáveis pela falta de atenção ou pela impulsividade”, enfatiza a psicóloga.

Recentemente, o Conselho Federal de Psicologia lançou uma campanha com o seguinte slogan: “Se você acha que seu filho está muito arteiro, fique calmo. Ele está apenas sendo criança, não tem TDAH”.

Campanha dentro das escolas

Na contramão de minimizar a preocupação que deve ser dispendida com o diagnóstico do transtorno, existem boatos de que a farmacêutica Novartis faça campanhas em escolas alertando sobre os riscos do TDAH e orientando sobre as formas de identificá-lo. Para muitos, isso justificaria a maior quantidade de diagnósticos e, consequentemente, o maior uso da ritalina nos últimos anos. Durante entrevista cedida ao site Drauzio Varella, a existência de tais campanhas foi veementemente negada pela farmacêutica.

Em 2010, porém, a Novartis e a ABDA (Associação Brasileira de Déficit de Atenção) promoveram o concurso “Atenção Professor”, que tinha como objetivo “ajudar os educadores a conhecer e lidar melhor com o TDAH”. Para levar o prêmio de R$7 mil era preciso apresentar as melhores propostas de inclusão de portadores de TDAH na sala de aula.

Além do valor, as escolas ganhariam um kit contendo uma champagne, um Certificado da Escola de Projeto de Inclusão e um troféu. O o líder do projeto iria receber nominalmente apoio para participar de um Congresso Nacional na área de educação, “contemplando passagem, hospedagem e inscrição no valor máximo de R$4.000,00”. Três escolas foram sorteadas.

A Novartis negou qualquer tipo de envolvimento com projetos educacionais dentro e fora de escolas, apesar de o projeto buscar auxiliar no reconhecimento e condução do transtorno e de a página oficial do concurso exibir a assinatura da empresa como uma das responsáveis pela iniciativa.

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