Cura sem mutilação

Foto: Corbis.com

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Duzentos anos atrás, a cirurgia era a única técnica para curar tumores malignos. Em 1812, foi publicado o primeiro número do The New England Journal of Medicine, a revista médica de maior circulação até os dias de hoje. Como parte da comemoração do 200º aniversário, a revista fez uma revisão dos principais trabalhos sobre a evolução da cirurgia oncológica.

Em 1809, bem antes do advento da anestesia, Ephraim McDowell removeu um tumor ovariano, demonstrando que tumores malignos de órgãos internos poderiam ser curados por intervenções cirúrgicas, desde que realizadas por mãos hábeis no menor tempo possível, por causa da dor. Foi a primeira cirurgia abdominal realizada nos Estados Unidos.

Em 1846, John Collins Warren descreveu o primeiro uso público da anestesia. Com o doente anestesiado havia possibilidade de realizar cirurgias mais complexas, embora associadas a taxas altíssimas de complicações infecciosas.

Em 1867, Joseph Lister introduziu a antissepsia nas práticas operatórias, passo fundamental para os avanços no tratamento do câncer ocorridos no século XIX e nas primeiras décadas do século XX. Ficou claro que qualquer órgão afetado por um tumor maligno poderia ser abordado cirurgicamente.

Nessa época, trabalhava em Chicago um cirurgião que exerceu enorme influência entre seus pares: William Halsted, hoje, nome de uma das avenidas da cidade. Em 1894, Halsted introduziu a técnica que ficou conhecida internacionalmente como mastectomia radical, baseada num conceito novo: a “ressecção em bloco”.

A mastectomia radical preconizava a retirada da mama inteira, dos ­músculos peitorais abaixo dela e de todos os linfonodos da axila, em continuidade – daí o nome de ressecção em bloco. A pele ficava apoiada diretamente sobre as costelas e os músculos intercostais, mutilação com grande impacto na feminilidade e na vida das mulheres.

O princípio que norteou Halsted era o de que as células malignas se espalhariam de modo centrífugo, da mama para as estruturas vizinhas. A cura só seria possível se os tecidos adjacentes fossem retirados em um único bloco, juntamente com o tumor ­primário, para evitar que sobrassem células ­tumorais no trajeto.

Em diversos centros do mundo, inclusive no Brasil, alguns cirurgiões influentes levaram tão a sério as ideias de Halsted, que passaram a realizar a chamada mastectomia radical ampliada, na qual retiravam também os linfonodos existentes na fossa supraclavicular.

Em pouco tempo, as ressecções em bloco foram adotadas para tumores de outros órgãos. O princípio de radicalidade descrito por Halsted tornou-se o primeiro mandamento da oncologia cirúrgica, apesar da falta de evidências científicas e da fragilidade dos argumentos que o sustentavam.

Foram necessários 74 anos para que a lógica das mastectomias radicais e das ressecções em bloco fosse questionada, curiosamente, por outro cirurgião americano: Bernard Fisher.

Com base em experimentos com camundongos, Fisher propôs que as células do câncer de mama teriam acesso aos linfonodos e à corrente sanguínea mesmo em fases precoces do desenvolvimento. O comprometimento macroscópico dos linfonodos seria simples reflexo regional da ­doe­nça já disseminada.

A mastectomia radical, segundo ele, era a um só tempo too much and too little. Isto é, exagerada no caso de tumores pequenos e insuficiente para curar tumores avançados.

Nos anos seguintes, numa série de estudos clínicos com milhares de pacientes, conduzidos por um grupo cooperativo mais tarde batizado como National Surgical Adjuvant Breast and Bowel Project (NSABP), Fisher demonstrou que o câncer de mama poderia ser tratado com operações muito mais econômicas, com os mesmos índices de cura e resultados estéticos incomparavelmente superiores.

A metodologia empregada pelo NSABP na análise dos dados estatísticos tornou-se obrigatória nos estudos. Nasceu a ­cirurgia oncológica moderna.

Publicado em Carta Capital
Fonte: Blog Saúde Brasil
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