“Reflexão sobre a existência da Tabela SUS”

Gilson Carvalho

Mais uma grande polêmica na praça: TABELA SUS. Confabulo comigo e com outros. Reflito. Analiso. Falo. Escrevo. Muitas vezes faço tudo isto mais do que queriam, mas sempre menos do que devia. Do meu ponto de vista, de onde vejo!  É difícil e solitário falar e escrever o que se pensa caminhando pelo campo das idéias. Quando nos manifestamos, em determinados assuntos, existem sempre os despreparados para a troca de saberes e que levam nossa opinião sobre o tema como um ataque pessoal. Espero que, ao discutir tabela, não aconteça mais uma vez isto.

Existe uma tabela SUS de procedimentos e que vem da década de 80 oriunda do INAMPS. Tabela é um nome genérico usado em todos os setores da atividade humana e que baliza valores de troca de compra-venda. Podemos pensar nas várias tabelas em seus vários estágios. Temos tabelas doinsumos industriais e comerciais, de produtos prontos e semi-prontos, de prestação de serviços, etc.. Tabela dos valores de trabalho por profissão com patamares máximos de horas trabalhadas e salario mínimo. Muitas vezes os patrões acertam entre si uma tabela única para todos de como irão remunerar insumos e mão de obra e depois a tabela de comércio do produto final. Os empregados também o fazem com algumas definições legais (mínimos) e outras acertadas entre eles.

A única esfera de governo que pode diretamente arrecadar para a saúde é a União. Foram criadas contribuições sociais, para financiamento das ações de previdência, saúde e assistência social, áreas da seguridade social. Contribuições sobre o consumo (COFIN), sobre o lucro líquido (CSLL), sobre o trabalho (CSEESF), sobre os concursosprognósticos e outras fontes de valores menos expressivos. Além disto financia a saúde o seguro obrigatório de veículos automotores terrestres (DPVAT) que, por ser seguro de propriedade direta dos que o pagam e usufruem, jamais poderia ser computado no mínimo constitucional obrigatório sobre o dinheiro federal. Um dia ainda convenço autoridades de direito, de minha argumentação.

Assim a maior fonte de financiamento da saúde, responsável por apenas cerca de 45% é a UNIÃO. Sem nenhuma bondade ou favor, ou troca, estes recursos têm que ser rateados entre união, estados emunicípios. Apenas porque quem arrecadada  não tem mais a competência do fazer a ação final que é dos estados e municípios. Rateio obrigatório.

Estes recursos do SUS têm dois grandes destinos. O dinheiro obrigatoriamente transferível aos outros entes públicos (estados e municípios) e o outro para pagamento dos serviços complementares do setor privado.

Vamos nos concentrar nos comentários sobre a        TABELA SUS de remuneração dos serviços privados complementares ao SUS. Erroneamente, existe também uma tabela de “prestação de serviços”, por produção,  aplicada aos gestores públicos estaduais e municipais. Tabelas do pacto: ACS, PSF, VS, medicamentos, gestão, investimentos etc. etc. Porque não usam aí o termo “tabela”, ainda que a pratiquem, parece que ela não existe!!! Não querer falar de tabela, sabendo que ela existe, é no mínimo falacioso.

Para rateio entre o público existem regras claras, objetivas, expressas  na Lei 8080 de 1990 e depois completadas pela LC 141 de 2012. Regras nunca cumpridas e sempre ridicularizadas pelas portarias ilegais e seus autores. Não há TCU, SNA, CGU, MPF que queira investir no combate a esta ilegalidade. Ai se fossem dos estados e municípios!!! Após uma semana a tropa implacável, em peso, lá estaria.

Para a transferência remunerada ao privado, se estabeleceram regras também na Lei 8080. O tema é tratado no Art.26:  “Os critérios e valores para a remuneração de serviços e os parâmetros de cobertura assistencial serão estabelecidos pela direção nacional do Sistema Único de Saúde (SUS), aprovados no Conselho Nacional de Saúde.

§ 1° Na fixação dos critérios, valores, formas de reajuste e de pagamento da remuneração aludida neste artigo, a direção nacional do Sistema Único de Saúde (SUS) deverá fundamentar seu ato em demonstrativo econômico-financeiro que garanta a efetiva qualidade de execução dos serviços contratados.”

Podemos dissecar esta definição explicando-a com mais palavras:

1)     Critérios e valores, para remuneração de serviços de privados, complementares: o Art.26 pertence ao Título: dos serviços privados; Capitulo II da participação complementar.

2)    Critérios: o que determina como será feito o pagamento, como serão apurados custos ;

3)    Valores: a cada tipo de ação (discutiremos à frente) será atribuído um valor submetido aos critérios definidos previamente;

4)    Estabelecidos pela direção nacional do SUS: esta direção deve ser, na minha opinião,  o colegiado de direção das três esferas de governo, já que o SUS não pode ser entendido como exclusivamente seu componente federal e os serviços de terceiros serão comprados no privado pelas três esferas de governo;

5)    Aprovados no Conselho Nacional de Saúde: nenhuma alteração de critério ou valor poderia ser feita sem que o ConselhoNacional de Saúde aprovasse.

6)    Demonstrativo econômico e financeiro: ao estabelecer critérios, valores, formas de reajuste, pagamento de remuneração, a direção nacional do SUS deverá fundamentar-se em demonstrativo econômico e financeiro, para garantia do valor justo;

7)    Garantia da qualidade dos serviços prestados: avaliação não apenas quantitativa, mas qualitativa.

 Sintetizando estes argumentos o que fica de principal é ter critérios e valores com fundamento econômico e financeiro para remunerar o privado complementar ao SUS, avaliando a qualidade dos serviçosprestados.

Este estabelecimento de critérios tem que ter variáveis adequadas a tempo e lugar. Não se podem usar os mesmos critérios de valoração para uma realidade estrondosamente diferente dentro do Brasil.Desde a presença de profissionais de saúde devidamente qualificados, como instalações físicas e equipamentos de saúde e a logística. O que poderia se imaginar e defender que fosse uma valoração única deverá ter diferenciais baseados em custos por regiões e/ou estados.

Vamos nos perguntando: onde está a “inteligência financeira do SUS” atribuindo critérios e valores de remuneração? Buscando justificativas econômico-financeiras para garantir o valor justo de troca com o setor privado? Cadê os modelos de avaliação da qualidade de serviços comprados do setor privado? Parece que, no essencial, nos reduziríamos a uma incompetência quase total nesta área. Não há possibilidade de estabelecer critérios e valores se não tiver gente no quadro permanente do Ministério da Saúde  com expertise continuada no assunto. Equipe técnica da saúde, da economia, do direito  trabalhando nisto, incansavelmente, com a contribuição da representação estadual e municipal e talvez de consultores.

Tudo isto começa por uma operação vulgar: estudo de custos. Qual o último que fizemos? O que compramos de terceiros? Qual o cientificismo nas alterações de valores de tabela que usamos até hoje? Estes custos têm vários desdobramentos. Começam pelo custo de todos os insumos materiais, dos valores de mão de obra, dos serviços de apoio e assim por diante. Se congelado nesta fase de custos de insumos,  teríamos uma forma de remuneração individualizada por unidade de serviço  como já foi até 1983. Havia condenação quase unânime, exceto pelos beneficiários. Uma segunda fase é colocar valores nosprocedimentos um a  um ou em grupo de procedimentos. Aconteceu a partir de 1983 e persiste até hoje. O que já se tentou, a seguir, foi estabelecer valores globais.  Hoje vigora a opção por um mix entre remuneração por procedimentos ou grupo de procedimentos e algumas tentativas de valoresglobais que têm se baseado em séries históricas congeladas.

O pagamento global, o mais defensável,  hoje, ainda é uma experiência, no meu entender, frustrada por diversos desacertos. Sumariamente podem acontecer 3 coisas por não se basear em custos: dinheiro insuficiente e prejuízo do prestador, dinheiro sobrando, para alegria do prestador e empate possível entre remuneração e custo e que carece de comprovação, se existe. O silêncio do prestador pode ser um péssimo termômetro. Tem-se que bem avaliar quais foram os resultados de nossa experiência em pagamento global (erroneamente denominado de contratualização) com hospitais universitários e filantrópicos. O que mais intriga é que se esqueceu que o ponto de partida de qualquer compra de serviços é o estudo de custos.

Muitas vezes reduzem esta discussão a valores de tabela de procedimentos. Critérios e valores para a remuneração de serviços. Os valores devem ter uma lógica que sempre podem ser denominados de tabelas ou qualquer nome equivalente. O que faz a diferença é o ponto de base, a fase escolhida no estabelecimento de valores: por insumo, por procedimento, por grupo de procedimento, por patologia ou global (per capita ou não). Já passamos pelas três primeiras bases e o fizemos de péssima qualidade pois não tivemos nem a intenção de cumprir a lei. Acho, que, aqui também, há um cinismo administrativo a que, muitas vezes, se adaptam os prestadores. Por conveniência? Não se faz contrato global sem estudo de custos!!! Todo setorcomercial e industrial sabe disto, por que o público da saúde teima em omitir esta fase?

O ponto fundamental que nos falta é o estabelecimento de custos. Não existe tabela ou qualquer outra maneira de remuneração que não seja baseada em custos. Os gestores do SUS não fazem isto ou o fazem amadora e pessimamente usando achismos e seguindo pressões dos próprios prestadores ou antipatia e  ira contra  uma ou outra área de prestação de serviços. Levantar a cadeia de todos os custos. Todo o cadeia produtiva de bens e serviços ou mista, deve ser precificada desde os  custos de insumo, passando pelos processos e pela qualidade dos resultados esperados. Definidos todos os custos da linha de produção deve ser feita a escolha de que fase será tomada como  base.

Baseados nos custos e nos resultados, cabe a opção em que ponto se alicerçará nossa tabela. São essenciais neste processo  algumas etapas: levantamento de custos, estabelecimento de critérios e valores; opção de que fase do processo será usada; optar pelos métodos de escolha de prestadores; elaborar edital inteligente (raríssimamente usado); preparar contratos e convênios melhores  em que se tenham claros os objetivos e o processo, incluindo o jurídico; acompanhar e avaliar os resultados.

Quando fizemos isto? Quem fará isto? Quando começará a ser assim? Nada faremos se não tivermos construído processos combases científicas. Os valores de remuneração devem buscar a justiça de tal modo que não se pague pouco e se aceitem serviços ruins. A crítica não deve ser contra o termo tabela, pois mesmo sem este nome sempre será uma. A briga é sobre que base, que ponto do processo,  será construída esta tabela: insumos, procedimentos, grupo de procedimentos, atenção a condições de saúde, globalmente. Para se conseguir o melhor ponto tem-se que chegar até ele estudando custos. Sem estudo de custos tudo será frágil e antecipadamente iníquo e injusto.

Termino com minha profissão de fé técnica e política. Minha opção é que o pagamento de serviços privados ao SUS seja dealguma das formas globais. Para isto temos que ser melhores em estabelecimento de custos, elaboração de editais e de contratos e, espertíssimos,  em controle e avaliação destes  contratos. Falta-nos muito começando por entender minimamente isto!

Gilson Carvalho – Médico Pediatra e de Saúde Pública – carvalhogilson@uol.com.br

O autor adota a política do copyleft em seus textos disponíveis no site:  www.idisa.org.br
“É necessário se espantar, se indignar e se contagiar, só assim é possível mudar a realidade.” Nise da Silveira
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